O perigo de uma história única
A palestra “O perigo de uma história única”, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é uma verdadeira aula para percebermos as mazelas causadas pela historiografia etnocêntrica levada aos povos africanos. O mundo é um palco onde se digladiam as versões, e o poder é usado para impor a história única como se fosse toda a verdade.
Logo no início, a escritora conta como fazia mal a ela, não fazer parte da literatura, como personagem, já que os livros disponíveis na Nigéria de sua infância eram os escritos pelos colonizadores britânicos. Os personagens dos livros que lia gastavam boa parte dos dias falando sobre o tempo: “Será que vai fazer sol amanhã?”. Fazia todo o sentido para um britânico, mas era estranhíssimo para uma menina nigeriana, na medida em que não era apenas um dos mundos ao qual tinha acesso através dos livros, mas toda a literatura disponível. E confronta ao final da palestra com a parte na qual ela narra quando se tornara escritora, e é cobrada que seus romances não seriam suficientemente “africanos”. Como se ela só pudesse existir como narradora de uma determinada maneira, como se só pudesse contar uma única história. Como se um escritor de uma comunidade carente do Rio de Janeiro, por exemplo, só pudesse escrever sobre a violência e só pudesse escrever usando gírias cariocas. A arte é o território da liberdade. E da reinvenção. Nela, podemos qualquer coisa. Até sermos nós mesmos.
Concordo com uma afirmação feita logo no início do vídeo em que a history teller (contadora de história) diz o quanto somos impressionáveis e vulneráveis face a uma história, principalmente quando somos crianças, e por sermos crianças não podemos questionar que possam existir diferentes histórias para um mesmo assunto. Somos induzidos a acreditar em tudo que nos mostram.
Quantas histórias únicas nós temos? E se contássemos a história do nosso país pelos olhos dos índios e não dos portugueses que nos colonizaram? “O problema dos estereótipos não é que eles são errados, mas são incompletos.”, diz Chimamanda em sua palestra. A história final acaba sempre contada por aqueles que têm mais poder e acabam assim se tornando a identidade definitiva de um povo, o limitando, restringindo-o, fazendo com que este perca sua dignidade e se despersonifique. É o que acontece, por exemplo, com o Brasil: somos o país das mulheres bonitas, do Carnaval, do samba, da violência e do futebol. Até parece que não somos nada além disso. Somos tantas coisas e lá fora somos barrados nos aeroportos por carregarmos esse estigma gerado por todas essas diferentes versões de uma mesma história única que há muito é contada sobre nós. O estigma de existirem aqueles que são mais e melhores, e os que são menos e inferiores, foi o mesmo adotado por Adolf Hitler para justificar seu ódio para com os judeus, por exemplo, e diariamente por todos aqueles que se sentem do direito de oprimir e subjulgar pessoas, povos e culturas, simplesmente por elas terem crenças e culturas diferentes.
Necessitamos renovar o senso-crítico que possuímos enquanto povo brasileiro, e resgatar a educação e alguns valores para essa geração que fazemos parte e as posteriores. Esse é um momento muito particular do nosso país, em que crescemos economicamente como nunca antes, mas culturalmente falando, permanecemos estagnados no tempo, com uma educação que deixa muito a desejar e nos impede de prosseguir e moldar nossa própria identidade. É preciso educar para formar os tipos de homens e mulheres que queremos. Além disso, perceber o quanto é necessária essa mudança, também faz com que nós tentemos olhar o mundo não mais sobre a perspectiva da diferença, mas sim da semelhança. E se contássemos outras histórias que não as que estamos acostumados a ouvir sobre os pobres, os ricos, a escola, os nordestinos, os homossexuais, os árabes, muçulmanos? O que eles têm em comum conosco, o que a mídia e a sociedade escondem sobre esses grupos? O que está por trás do que assistimos na televisão e lemos nos jornais? É importante resgatar esse tipo de senso-crítico, para que possamos andar para frente, ver que existem outras culturas além das muitas existentes no nosso “mundinho” ocidental.
Destaco ainda a parte que a escritora nigeriana salienta: “É impossível falar sobre história única sem falar de poder. Há uma palavra da tribo nigeriana Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas do poder no mundo, é a palavra “nkali”. É um substantivo que corresponderia a: “ser maior do que o outro”. Nos nossos mundos econômicos e políticos, histórias também são definidas pelo princípio do “nkali”. Como são contadas? Quem as conta? Quando e quantas histórias são contadas? Tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O Poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quiser destruir uma pessoa, o jeito mais simples é contar a sua história”.
Por fim, saliento a forma da palestra, na qual a escritora nigeriana explora todo seu argumento feito de embates narrativos para mostrar como a história única aniquila a vida. A escritora desenvolve todas as principais questões e todos os principais conceitos a respeito dos discursos sociais e da importância crucial da ficção, mas sem usar um termo empolado, sem usar um milímetro de jargão especializado, recorrendo tão somente à sua própria experiência de mulher, de negra, de africana e de escritora. A clareza é a gentileza do filósofo, lição que muitos acadêmicos não conseguem aprender. Eu ainda iria mais além, afirmando que a clareza é a obrigação de quem quer ser bem entendido, e o humor seria a verdadeira gentileza agregada a esta clareza.